O CENTENÁRIO DO DISTRITO DE SERRA DAS ARARAS, EM CHAPADA GAÚCHA-MG, NO CONTEXTO DOS 140 ANOS DA EMANCIPAÇÃO DE SÃO FRANCISCO-MG

 

Xiko Mendes
(Membro Efetivo da ALNM – Academia de Letras do Noroeste de Minas; Titular da Cadeira cujo Patrono é o historiador Braziliano Braz).

 

            Na bacia hidrográfica do rio Urucuia, na interseção Norte-Noroeste de Minas, não há dúvida de que o marco zero da colonização portuguesa foi São Romão cá em cima; e Morrinhos lá embaixo (hoje na zona rural de Matias Cardoso-MG, na barra do rio Verde Grande, que nasce ali “prá riba”, pelas bandas de Montes Claros-MG). Fincada nas barrancas do lado esquerdo do médio São Francisco, uns 30 Km acima da barra do Urucuia, São Romão virou sede de julgado lá no distante 1719, segundo o historiador Diogo de Vasconcelos. O Bandeirante Matias Cardoso de Almeida, paulista brugreiro, e sua numerosa parentela, se tornaram donos desse vasto território, inclusive assenhoreando-se das terras urucuianas e derredores. Para trás ficou na lembrança dos indígenas Caiapós, a marca da destruição de suas aldeias, inclusive a Guaíbas, na ilha de São Romão, e a Tapiraçaba, no que hoje é Januária. Caiapós em fuga ainda permaneceram sitiados por muito tempo na beira da minha querida Carinhanha, rio-fêmea, coirmã do Urucuia, o “rio-de-amor” de Guimarães Rosa.

Tudo isso é possível de se ler no livro “SÃO FRANCISCO NOS CAMINHOS DA HISTÓRIA”, autoria do eminente historiador Brasiliano Braz, “o sabe-tudo” barranqueiro que lapidou sua memória nos arquivos do sertão sanfranciscanopré-roseano. Uma das belas coisas desse livro (BRAZ: 1977, p. 339-340), agora reproduzo neste trecho antológico sobre os Fundadores de Serra das Araras:

 

Vindos das bandas de Tremedal (hoje Monte Azul [MG]), onde enfrentaram lutas e foram vencidos, ali na Serra se fixaram, em tempos bastante recuados, os avalentuadosIRMÃOS BITO. Aleixo, Joaquim, Firmino, João e Antônio Bito eram os componentes da irmandade. O último, Antônio Bito, ainda viria a escrever páginas de sangue, em nossa História [de São Francisco-MG], como partícipe do conflito de 1896. Foram esses os primitivos habitantes da hoje Vila de Serra das Araras. A lenda aqui se confunde com a história. Esta se funda no fato material do levantamento, por Aleixo Bito, da primeira e tosca igrejinha de palha onde nasceu o Culto à Imagem de Santo Antônio [...]. Aleixo de BRITO, seu construtor, foi o primeiro zelador da velha e extinta capelinha. Uma sobrinha de Aleixo – a Maria Bito – tornou-se muito conhecida nesta cidade [de São Francisco]. Era filha do Antônio Bito.(grifos nossos).

 

Outro historiador urucuiano, (DURÃES: 1996, p. 116, 131, 128), também documenta a presença da família BITO (Brito) nos interstícios entre os rio Urucuia e Carinhanha. Veja abaixo o que ele diz:

 

Depois de 1913, com o falecimento do Coronel Cândido José Lopes [nascido em 1849], fica viúva sua terceira esposa bem conhecida por MARIA BITA, natural do ermo da SERRA DAS ARARAS[no município de São Francisco-MG].  Na Partilha de Bens com os filhos do falecido, [ela] se viu lograda pela vasta inteligência de Antonino [Cândido Lopes – 1882/1970, filho do dito coronel com a esposa anterior, à época já falecida, D. Ana Josefina de Queiróz, filha do temido fazendeiro Marcolino de QUEIRÓZ – parente dos Mendes de Queiróz]. Furiosa, [Maria] contratou o famoso Antônio Dó, bem conhecido como ‘Lampião Mineiro’, que veio dos barrancos do [rio] São Francisco para matar Antonino. Sorte de Antonino que a notícia veio na frente do grande jagunço. Ciente do seu destino, [ele] fugiu para a Fazenda Mangues [lá no Vão do São Domingos perto do rio Piratinga – local da fazenda de Silvério – pai de Rafael Mendes] para obter ajuda e proteção do seu amigo e companheiro Felipe RODRIGUES da Costa.

 

Acrescentamos, ainda, que segundo Mendes (2017), Dona Maria Bita (que não deixou descendentes conhecidos), também era dona das Fazendas Ilha e Cobra. A primeira situada na confluência do Ribeirão dos Bois com a Carinhanha, pelo “lado” de Minas, hoje em Chapada Gaúcha-MG; e a segunda ela comprou do meu trisavô paterno Rafael Mendes de Queiróz e ficava dentro do PARQUE NACIONAL GRANDE SERTÃO VEREDAS – PARNA-GSV, na margem esquerda da Carinhanha, no “lado” da Bahia, município de Cocos.

Quase todo mundo conhece a história da corajosa MARIA DA CRUZ, que virou nome de cidade norte-mineira, liderou um padre (Antônio Mendes Santiago, meu parente?) e tantos outros seus parentes, em 1736, quando a Bacia do Urucuia se levantou num levante guerreiro contra os altos impostos cobrados pela Coroa Portuguesa meio século antes da Inconfidência Mineira. Com Maria da Cruz se junta, também, outra urucuiana igualmente corajosa: MARIA BITA. Descendente dos fundadores de Serra das Araras (e provavelmente dos Guedes de Brito que foram donos de metade do rio São Francisco entre 1630 e 1822 quando as sesmarias foram proibidas), a zona de influência de Maria e dos BITOS estendeu-se pelos atuais municípios de Chapada Gaúcha, Cocos e Formoso (onde essa família tem numerosa parentela até hoje, inclusive eu descendo deles; Amância Francisca Correia de Brito, apelidada de Amância Bita, esposa de João Peba, é a minha bisavó materna).

Essa Serra das Araras de que tanto falo e glorifico nasceu da religiosidade rústico-sertaneja, como Bom Jesus da Lapa nas barrancas sanfranciscanas. Conforme nos relata Brasiliano Braz, ali começou na passagem entre os séculos XVIII-XIX, um culto a Santo Antônio. Disso resultou até hoje a sesquicentenária romaria que atrai gente do Brasil e do mundo. Em 1840 o naturalista inglês, George Gardner, já nos dava notícia da fama de Santo Antônio em Serra das Araras.

Em 1877, o histórico arraialzinho de Pedras de Cima (depois Angicos) é renomeado como SÃO FRANCISCO-MG e emancipado, tomando de São Romão a condição de município-dono da maioria das terras das bacias do Urucuia e Pardo, no rumo da Carinhanha bem agora onde está Chapada Gaúcha. Um pouco depois, em 1891, era criado o Distrito de BREJO DA PASSAGEM, com sede no povoado – antigo Porto da Manga – onde hoje é a cidade de Urucuia-MG. Esse distrito estendia seu domínio pelas veredas do Ribeirão Catarina, afluente do Rio Pardo, dominando assim o lucrativo e movimentado centro de romaria a Santo Antônio. Portanto, os chapadenses, oito décadas antes da chegada dos Gaúchos (1975/6), tiveram sua ancestralidade ligada ao Porto da Manga e ao velho Arraial de Pedras de Cima, que neste 2017, comemora 140 anos de emancipação.

Posteriormente fora criado o Distrito de Urucuia. E em 17 de setembro de 1917, o antigo DISTRITO DE BREJO DA PASSAGEM PASSOU A TER COMO SEDE JUSTAMENTE SERRA DAS ARARAS que, assim, inicia sua vida institucional como território distrital de SÃO FRANCISCO-MG até 1997 quando este município fez 120 anos, e a “Vila dos Gaúchos” emancipou-se, tornando-se a próspera CHAPADA GAÚCHA. Os Serranos então se tornaram Chapadenses (ou não devia ser o contrário?).

O PARQUE NACIONAL GRANDE SERTÃO VEREDAS foi criado em 1989 e ampliado em 2004, incorporando aí fazendas como a COBRA (revendida pelo meu trisavô já citado) para DONA MARIA BITA que, como vimos, descende dos fundadores de SERRA DAS ARARAS. Assim como os Bitos Serranos, Antônio Dó (1859-1929), natural das barrancas de Pilão Arcado-BA, também migrou da norte-mineira Tremedal para se fixar na Boa Vista, zona rural de São Francisco-MG. Dali se tornou o mais famoso comandante de jagunços entre Januária e as Fronteiras da Trijunção BA/GO/MG. Celebrado por autores como Guimarães Rosa no romance “Grande Sertão: Veredas”, Antônio Dó tinha no Vão dos Buracos, em Vargem Bonita e em Serra das Araras, suas zonas de refúgio preferidas durante os embates policiais com as “Volantes” que saíam em seu encalço.

Jagunço valente, mitificado e eternizado no inconsciente coletivo serrano, Antõe Dó não se rendeu assim como Canudos. Morrera traído por um pacto (entre os pactários do Demo?), Francília (sua última esposa) e Zé Olímpio (um de seus jagunços). Com o fim do bando em 1929, um de seus jagunços, Migué Fogoso, ainda foi aposentado pelo FUNRURAL segundo Brasiliano Braz. Um irmão dele, Leonísio Pereira Pinto (Seu Liozinho) mudou para o atual Distrito de Goiaminas, em Formoso-MG, ali tornando-se professor (depois escrivão em Flores de Goiás aonde ainda vive).
Um sobrinho dos “Fogosos”, Seu Chico Fogoso, casou-se com minha Tia Isabel Mendes em terras hoje dentro do PARNA-GSV. Roubou da sogra, Dona Coleta (irmã do meu Vovô Firmino Barbosa), cordões de ouro e outros objetos valiosos, matou-a e a enterrou entre carrascas de buriti na beira da Carinhanha. Os Barbosas, migrados de Porto Cajueiro e residentes na Fazenda Muriçoca, revidaram e deram um fim nele. Como tinha corpo “encantado”, fechado pelo patuá certamente herdado dos seus tios, seu assassinato se deu quando ele passava dentro da água de uma vereda. A água – dizem os mais velhos – “desencanta” o “feitiço”. Assim foi receber o abraço eterno de Lucífer, sendo ele um dos últimos filhotes de jagunço de Antõe Dó.

Toda essa história, que é muito mais longa que esse breve resumo, é uma amostragem a partir da qual podemos refletir sobre as camadas de esquecimento que recaem em nossos ombros após a chegada dos imigrantes sulistas. Dá-se a impressão de que antes dos Gaúchos não havia história. Há uma amnésia congênita corroendo a Memória Subterrânea neste entre-lugarUrucuia-Carinhanha. Não sei se vão comemorar o CENTENÁRIO DO DISTRITO DE SERRA DAS ARARAS neste 17 de setembro de 2017. Mas deixo aqui este relato como prova da valiosa contribuição de Serra das Araras como Patrimônio Cultural e Histórico fundante do Imaginário Coletivo dos municípios da BACIA DO RIO SÃO FRANCISCO e do PARQUE NACIONAL GRANDE SERTÃO VEREDAS.

 

BIBLIOGRAFIA CITADA:
BRAZ: Brasiliano. São Francisco nos Caminhos da História. Bh: Leme, 1977.
DURÃES, Oscar Reis. Raízes e Culturas de Buritis no Sertão Urucuiano,Buritis-MG: Prefeitura Municipal de Buritis, 1996.
MENDES, Xiko. Fronteiras da Trijunção: representações e memórias do Sertão-Gerais no Parque Nacional Grande Sertão Veredas. Dissertação de Mestrado, PPG-MADER, Universidade de Brasília (UnB): 2017.

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